segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Morreu George Steiner, um crítico de relações esparsas com a obra de José Saramago



Para o Times Literary Supplement, George Steiner leu O ano da morte de Ricardo Reis como um romance que nos apresenta uma Lisboa viciante e viciada, “um romance político importante, que também lança uma luz aguda sobre um dos temas mais antigos e aparentemente mais comuns: as aproximações entre a criação poética e a morte”¹. O romance em questão havia sido publicado em 1991 em língua inglesa com tradução de Giovanni Pontiero.

Da parte do escritor português, verifica-se que seu contato (pela leitura) com Steiner vinha de longe. Numa das entradas para os seus diários, comenta sobre um livro de Ignacio Echevarria sobre o crítico – George Steiner en diálogo con Ramin Jahanbegloo (1994): “Não conheço com suficiência bastante a obra de Steiner para confrontar pontos de vista meus com os de Echevarria. Em todo caso, parece-me redutora e parcial uma leitura que atribui a Steiner o propósito de recuperar o sentido perdido do mundo ‘através da experiência estética, da restituição de uma transcendência que emana da experiência estética, da restituição de uma transcendência que emana da obra de arte’. Bem ingénuo seria Steiner, acho eu, se pusesse na experiência estética, por mais sublime que ela fosse, as esperanças que tenha (se é que as tem) de dar sentido a um mundo que ele próprio declara ter já deixado de ser seu. Nem vejo como se transitaria da percepção de uma suposta transcendência de raiz estética àquilo que, no fim de contas, é o motivo condutor do pensamento de Steiner, condensado nestas suas palavras: ‘Todas as minhas categorias são éticas.’ Partindo daqui, creio que se tornam claras as razoes por que George Steiner se considera a si mesmo um ‘sobrevivente’, razoes que serão semelhantes, se não analiso mal, às que julgo ter encontrado em Sábato, semelhantes também às de Leonardo Sciascia, semelhantes ainda às de Günter Grass... Afinal, talvez o mundo devesse dar um pouco mais de atenção ao que ainda têm para dizer-lhe os ‘sobreviventes’. Antes que se acabem...”²

Noutra ocasião, agora para The New Yorker, o crítico franco-estadunidense citou outra vez O ano da morte de Ricardo Reis como “um dos maiores romances da literatura europeia recente” e, na mesma ocasião, emendou que “nada de tão apurado se escreveu sobre Pessoa e seus tons contraditórios”³. Saramago recorta a passagem do texto em questão nos seus Cadernos de Lanzarote e afirma sobre seu distanciamento físico de Steiner: “não conheço George Steiner, nunca o vi, nunca lhe falei, enfim, estou inocente...” Quando morreu, em 2010, entre as coisas mais próximas às leituras possíveis de José Saramago estavam os textos que Steiner havia publicado nessa revista.

Mas, de George Steiner, a simpatia pareceu se apagar apenas em torno d'O ano da morte de Ricardo Reis. Muitos anos mais tarde, já sem a presença do seu autor, o crítico colocou o dedo na suposta rivalidade entre o escritor Prêmio Nobel de Literatura e António Lobo Antunes, redizendo que aquele não era o maior escritor português da atualidade e sim o autor de As naus. Em matéria para a revista Ler, confessou que o maior galardão das letras devia ter sido partilhado entre os dois escritores.

Frequentemente lembrado como reformista do papel do crítico, George Steiner deixou vasta obra no ensaio, teoria e romance. O franco-americano escreveu extensivamente sobre a relação linguagem, literatura e sociedade e as implicações do Holocausto. Foi professor de Inglês e Literatura Comparada na Universidade de Genebra, Oxford e Poesia na Universidade de Harvard. Da sua obra, chegou ao Brasil títulos como Nenhuma paixão desperdiçada, Lições dos mestres, Tigres no espelho e outros textos da revista The New Yorker, No castelo do Barba Azul, A morte da tragédia, Tolstói ou Dostoiévski e Aqueles que queimam livros, o mais recente traduzido por aqui. George Steiner nasceu em Neuilly-sur-Seine, na França, em 1919; vivia em Cambridge, no Reino Unido.

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¹ A tradução livre é do excerto exposto na capa da edição estadunidense de O ano da morte de Ricardo Reis: “This is major political novel, which also throws a sharp light on one of the oldest and apparently most eroded of themes: the intimacies between the creation of poetry and death.”

² O excerto é da entrada para o dia 8 de janeiro de 1995, copiada nos Cadernos de Lanzarote. Diário 3 (Companhia das Letras, 1997, p.453).

³ O excerto é do texto “Foursome”, publicado em The New Yorker a 8 de janeiro de 1996. A passagem seguinte está nos Cadernos de Lanzarote. Diário 4 (Companhia das Letras, 1999, p.12).



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