Não se comemora o centenário de um escritor, celebram-se os
cem anos de vida de um ser humano que a qualquer momento pode aparecer numa
esquina, com uma camisa branca, ou talvez de flores, com um gesto tão aberto
que nele podem continuar a refugiar-se gerações de pessoas, com uma
incorruptível amizade, a mesma que o fez cruzar um século sempre acompanhado,
tão confortável na sua pele como na sua relação com outros, sempre seus
semelhantes. Porque Jorge Amado era dessa estirpe “graças a Deus”, como diria Zélia
Gattai quando se definiu a si mesma como anarquista por influência divina.
Jorge Amado e José Saramago poderiam ter tido uma relação
mais dilatada no tempo. Teria bastado que Saramago desse o pequeno passo que o
aproximaria do grande escritor brasileiro num tempo em que o mundo era jovem,
mas o sentido do respeito devido ao mestre levou a que o português seguisse o
seu caminho e esperasse que um dia, talvez, acontecesse o que tivesse de
acontecer. E assim foi. Saramago não se mostrou perante Jorge Amado de mãos
vazias, quando chegou à sua presença e amizade levava – simbolicamente, claro –
uns quantos livros que justificavam que ambos se encontrassem e se tratassem
por tu. Puderam fazê-lo, fizeram-no e profundamente, porque se a relação entre
o escritor da Bahía e o do Ribatejo não abarcou mais de uma década, foi
suficientemente intensa para que se contassem medos e projetos, sonhos por
realizar, aventuras que ficariam por viver e outras bebidas até à última gota.
Os dois escritores conversaram sobre política e paixões, dificuldades e logros,
por vezes com picardia, por vezes com uma seriedade quase doutoral que
rematavam com uma gargalhada, e daquelas conversas ficam ecos que alguns amigos
de vez em quando recompõem aos pedaços. Que pena que a grande Zelia Gattai não
esteja aqui para documentar, com a sua prosa fresca e lúcida, aqueles encontros
na Bahía, em Paris, Roma, Madrid e Lisboa, aquelas viagens pela Galiza ou pelo
norte de Itália, aqueles projetos de contruir pontes sobre rios e mares, sobre
oceanos, talvez entre planetas se ali existir o cheiro a canela, que é o cheiro
da vida que eles tanto amaram, os três, Jorge e Zélia, José.
Começa agora o ano de Brasil-Portugal. A Fundação José
Saramago entra em pleno nesta aproximação porque nasceu também para isso.
Celebrar os anos de Jorge Amado no seu dia, no seu mês, é o primeiro passo.
Depois virão outras atividades em que se irá contando que os seres humanos não
passam, ficam, são imortais enquanto haja quem os recorde e festeje. Com
dignidade, lucidez e emoção.
No enterro de José Saramago recordou-se Jorge Amado, o
momento em que o avião em que o casal Amado-Gattai viajava teve de fazer uma
aterragem de emergência. Então, Jorge, que tinha pânico de voar, pôs-se a pedir
aos gritos o jornal, ante o espanto de Zelia: “Mas Jorge, vamos morrer e tu
pões-te a pedir o jornal?” “Queres que morra sem saber o que passa no mundo?”,
foi a resposta do marido. Pois se no enterro de José Saramago se recordou esse
facto para dizer que no mundo, segundo os jornais, o que se havia passado era
que tinha morrido um homem bom, um imprescindível, hoje pode acrescentar-se que
os meios de comunicação, as livrarias, as bibliotecas contam nestes dias de
agosto que um grande escritor está em festa de aniversário e nós com ele. Que
não se foi, por isso, contrariando o jornal mexicano La Jornada que escrveu em manchete
quando o escritor do Brasil morreu “Adiós, Amado”, hoje, na Fundação José
Saramago o que dizemos, e connosco os que visitam a exposição e leem os seus
livros é “Olá, Amado”.
© Fundação José Saramago
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